Inicialmente, convém realizar uma breve regressão e contextualização da discussão jurídica (tese). Toda a temática gira em torno da possibilidade do Fisco Federal exigir a inclusão do ICMS pago na venda de mercadorias na base de cálculo do PIS e da COFINS (estas que são contribuições sociais previstas, respectivamente, no art. 195, I “b” da Constituição Federal e nas Leis nºs 9.718/98, 10.637/02 e 10.833/03).
Nos termos da Constituição Federal, tais contribuições devem incidir sobre a receita ou o faturamento do contribuinte.
Em razão disso, o judiciário brasileiro discute, ao menos desde 1999, qual seria o conceito constitucional de receita e faturamento e, se o sistema jurídico admite ou não que o ICMS (tributo Estadual e pago na saída de mercadorias do estabelecimento), possa ser incluído na base de cálculo, do ponto de vista jurídico e não econômico e/ou financeiro.
Após muitos anos de discussão da tese o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 02 de outubro de 2017, que “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS”.
Ocorre que mesmo após o julgamento do leading case pela Corte Suprema, a Fazenda Nacional apresentou recurso (embargos de declaração), com a finalidade de (i) requerer a modulação de efeitos da decisão (ou seja, que ela tenha eficácia temporal e abrangência limitada), bem como, (ii) que o tribunal se manifeste sobre a possibilidade da referida exclusão considerar apenas o ICMS efetivamente recolhido pelo contribuinte (e não aquele apurado antes da tomada de eventuais créditos previstos legalmente no que toca ao imposto estadual [destacado em NF]).
Nesse ponto, convém esclarecer primeiramente que o recurso manejado pela Fazenda Nacional não tem, tecnicamente, o condão de alterar a tese julgada favoravelmente aos contribuintes, posto que os embargos de declaração, de acordo com o Código de Processo Civil Brasileiro (CPC), se presta apenas à esclarecer contradição, omissão ou obscuridade na decisão recorrida.
De igual modo, limitar ou restringir a decisão proferida pela Corte Suprema geraria evidente afronta ao princípio da segurança jurídica e confiança no Estado.
Feito esse breve histórico da tese em âmbito nacional e abstrata, passamos a analisar e discutir a situação concreta posta sob análise.
O cotidiano no direito tributário demonstra que diversas empresas já possuem decisões favoráveis transitadas em julgado. Em razão disso, quando do julgamento do mérito do processo, as decisões proferidas aplicam integralmente e sem restrições a decisão proferida pelo STF em atendimento ao quanto determina o art. 927 do CPC[1].
Ainda assim, a Fazenda vem discutindo o tema, mesmo após o transito em julgado, questionando pedidos dos contribuintes para liberação dos valores depositados em juízo no curso do processo, uma vez que muitas empresas optaram por uma postura conservadora e nunca deixaram de realizar o pagamento dos tributos discutidos, ainda que na via judicial, a fim de minimizar e afastar qualquer risco. A Fazenda contesta tal pedido (liberação dos depósitos) por entender que os valores consignados em juízo consideraram o critério do ICMS recolhido e não o destacado.
Em muitas ocasiões o Juiz determina a liberação dos valores, todavia, a Fazenda recorre e instaura nova discussão em demandas que já deveriam estar finalizadas. Em tais casos a expectativa é de um julgamento favorável, uma vez que existem diversos precedentes que acolhem a tese dos contribuintes no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região[2].
Nas mesmas situações, é comum que ocorra o deferimento administrativo pela Receita Federal do Brasil do pedido de habilitação do crédito reconhecido em juízo.
Importante pontuar que até a presente data pende de julgamento no STF o recurso (embargos de declaração) opostos pela Fazenda Nacional no leading case que discute a tese em âmbito nacional.
Feita essa contextualização, passaremos a analisar os eventuais impactos de eventual decisão favorável ao Fisco, quando do julgamento dos embargos de declaração no STF, especialmente, se nesse cenário poderia ser revertida a decisão favorável e transitada em julgada em favor da Consulente em sua ação e, especialmente, eventuais riscos na compensação do crédito reconhecido com tributos à vencer (até o limite do crédito reconhecido).
Com efeito, há que se consignar que o sistema judicial brasileiro utiliza o sistema de precedentes a fim de harmonizar as decisões judiciais em território nacional, bem como, garantir celeridade na prestação jurisdicional. Isso implica dizer que as decisões proferidas pelo STF vinculam os demais julgadores e órgãos administrativos.
Todavia, sob o argumento de que os impactos financeiros da decisão poderiam prejudicar e inviabilizar atividades essenciais do governo, a Fazenda busca, junto ao Supremo Tribunal, limitar a decisão favorável aos contribuintes.
Ocorre que como já dito, o meio processual utilizado não é o adequado, bem como, que não se verifica no caso concreto hipótese de modulação de efeitos (que segundo a lei que rege a matéria, isso poderia ocorrer apenas por “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”[3]).
Além disso, a modulação de efeitos em matéria tributária é pouco usual na Corte Suprema e quando ocorre abrange, em prestígio da segurança jurídica, apenas os contribuintes que não ajuizaram ações, visando assim garantir estabilidade jurídica, especialmente para casos já julgados.[4]
De igual importância, vale ressaltar que a decisão transitada em julgado é irrecorrível em relação a esta, nos termos do art. 502 do CPC[5], a qual pode ser anulada apenas nas restritas hipóteses de cabimento da ação rescisória (art. 966 do CPC[6]), sendo que nenhuma delas se verifica no caso em estudo.
Lado outro, existe precedente do STJ (Superior Tribunal de Justiça) no sentido de que “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”[7].
Já em relação à possibilidade de ser revertida a decisão acerca do imposto que deve ser objeto de exclusão (se o recolhido ou o apurado [destacado em nota fiscal]) é possível concluir serem remotas as chances de reversão nesse ponto. Tal entendimento se justifica em razão da existência de precedentes do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (já transcritos acima) que reconhecem que a correta interpretação da decisão proferida pelo STF indica que o imposto a ser excluído é aquele destacado e não o recolhido.
Isso se justifica sob a ótica de que os créditos apurados pelo contribuinte e que reduzem o montante final do ICMS pago incidem em decorrência de regra jurídica e tributária distinta da que faz surgir o dever de recolhimento do tributo[8].
Portanto, é possível concluir que inexistem obstáculos jurídicos para que a Consulente se beneficie dos efeitos da decisão judicial proferida, uma vez que (na hipótese discutida): (i) existe decisão transitada em julgado reconhecendo seu direito; (ii) a compensação ocorrerá após a prévia habilitação do crédito pelo próprio Fisco Federal; (iii) por inexistir argumento jurídico plausível ou precedente que indique pela modulação dos efeitos da decisão do STF.
[1] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[2] “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. BASE DE CÁLCULO. ICMS A SER EXCLUÍDO. VALOR DESTACADO NA NOTA FISCAL DE SAÍDA. POSSIBILIDADE. 1. No julgamento do RE nº 574.706, o Supremo Tribunal Federal já sinalizou no sentido de que o valor do ICMS a ser excluído da base de cálculo das referidas contribuições é o incidente sobre as vendas efetuadas pelo contribuinte, ou seja, aquele destacado nas notas fiscais de saída.
- Se o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da COFINS, o valor a ser abatido pelo contribuinte só pode ser aquele que representa a integralidade do tributo repassado ao erário estadual, ou seja, o destacado na operação de saída, pois, de modo contrário, haveria simplesmente a postergação da incidência das aludidas contribuições sobre o tributo cobrado na operação anterior. Precedentes desta Corte.
- Embargos de declaração da União parcialmente acolhidos, sem alteração do julgamento.” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5000707-05.2017.4.03.6130, Rel. Desembargador Federal CECILIA MARIA PIEDRA MARCONDES, julgado em 10/07/2019, e – DJF3 Judicial 1 DATA: 15/07/2019)”
“PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – ALEGAÇÃO DE OMISSÃO EM RELAÇÃO A QUAL ICMS DEVE SER EXCLUÍDO DA BASE DE CÁLCULO DO PIS E DA COFINS – INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO ACÓRDÃO EMBARGADO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. I – Os embargos de declaração visam ao saneamento da decisão, mediante a correção de obscuridade, contradição, omissão ou erro material (art. 1.022 do CPC). II – O acórdão determinou a aplicação do entendimento firmado pelo e. STF no RE 574.706/PR, segundo o qual, o valor do ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS é o destacado da nota fiscal e não o efetivamente pago. III – Determinada a aplicação do mencionado paradigma, não há qualquer omissão a ser sanada no voto proferido. IV – Não é cabível a rediscussão dos termos do acórdão paradigma, devendo os órgãos colegiados decidir as questões pendentes com base na tese firmada pelos Tribunais Superiores, nos termos do artigo 927, III e 1.039, ambos do Código de Processo Civil. V – Não demonstrada a existência de quaisquer dos vícios elencados no artigo 1.022 do Código de Processo Civil, impõe-se sejam rejeitados os presentes embargos de declaração. VI – Embargos de declaração rejeitados.” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApReeNec – APELAÇÃO / REEXAME NECESSÁRIO – 5009275-03.2017.4.03.6100, Rel. Juiz Federal Convocado MARCIO FERRO CATAPANI, julgado em 10/07/2019, e – DJF3 Judicial 1 DATA: 15/07/2019)”
[3] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[4] “[…] V. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SEGURANÇA JURÍDICA. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.” RE 556664/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ 12/06/08.
[5] Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
[6] Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofender a coisa julgada;
V – violar manifestamente norma jurídica;
VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
[7] “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. CONTRIBUIÇÃO AO INCRA. LEI N. 7.787/1989. INTERPRETAÇÃO CONTROVERTIDA NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS. SÚMULA 343 DO STF. APLICAÇÃO. A admissão de ação rescisória ajuizada com base no art. 485, V, do CPC/1973 pressupõe a demonstração clara e inequívoca de que a decisão de mérito impugnada tenha contrariado a literalidade do dispositivo legal suscitado, atribuindo-lhe interpretação jurídica absolutamente insustentável.“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais” (Súmula 343 do STF).Hipótese em que a ação rescisória não é cabível, pois o acórdão rescindendo, cuja conclusão é no sentido de que a contribuição ao INCRA teria sido extinta pela Lei n. 7.787/1989, apoia-se em interpretação razoável, orientada, à época, por diversos julgados deste Tribunal Superior.Ação rescisória não conhecida”. (AR 4.443/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Rel. p/ Acórdão Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/05/2019, DJe 14/06/2019)
[8] “Em qualquer teoria, contudo, resta claro que a não-cumulatividade mantém incólume a base de cálculo da exação não lhe operando qualquer modificação. A consideração importa, porque, apesar da nomenclatura, a incidência do IVA (em sua sistemática mais usual, que é a da subtração indireta) não se dá sobre o valor agregado, mas sim sobre a operação cheia. A posteriori é que se tem a dedução, operada pela não-cumulatividade, do tributo pago na etapa anterior. Em sendo assim, como a base de cálculo é o valor da operação , não podemos concordar com a tese dos que sustentam que a não-cumulatividade integra a base de cálculo do ICM (ou de qualquer imposto de valor agregado).” (MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. São Paulo. Noeses.2012.)